quarta-feira, 6 de julho de 2016

Educação Infantil está virando Ensino Fundamental

Recentemente, a Fundação Lemann enviou uma proposta de mudança para os estudos que estão definindo a base nacional comum da educação infantil no Brasil. Nela, propõe-se uma maior ênfase na alfabetização.
Diane Ravitch mais uma vez relata em seu blog estudos que mostram os efeitos deletérios da antecipação escolar proposta no Brasil pela Fundação Lemann e que evidenciam que as pressões por antecipar ambientes estruturados de aprendizagem voltados para habilidades escolares típicas da primeira série (hoje já iniciando-se aos seis anos no Brasil) produz efeitos nefastos na formação das crianças. Especialmente, porque não param nas proximidades dos seis anos, mas vão em cascata afetando os anos iniciais da pré-escola e até mesmo a creche.
Esta concepção induz a uma febre para “aproveitar janelas de desenvolvimento” criadas por teorias duvidosas do desenvolvimento infantil e que constituíram um mercado milionário para as empresas educacionais, transformando as crianças em cobaias de “inovações” supostamente ancoradas em neuro-ciência.
No referido post Diane mostra a que levam as pressões que o Common Core (algo como uma base nacional comum restrita a leitura e matemática nos Estados Unidos) e as pressões por antecipação dos testes que geralmente acompanham estes movimentos, conduzindo a mudanças que não são bem vindas para a formação das nossas crianças. Mencionando publicação do The Atlantic Magazine, por Erika Christakis, diz:
“Um estudo, intitulado “É o Jardim de Infância a nova primeira série?“, que compara atitudes dos professores de jardins de infância em todo o país entre 1998 e 2010, constatou que o percentual de professores que esperam que as crianças saibam ler até o final do ano havia subido de 30 para 80 por cento. Os pesquisadores também relataram mais tempo gasto com manuais e tarefas, e menos tempo dedicado à música e arte. O jardim da infância é, de fato, a nova primeira série, concluíram os autores melancolicamente. Por sua vez, as crianças que faziam uso dos anos do jardim de infância como uma transição suave para a escola estão, em alguns casos, sendo retidos antes que tenham a chance de começar. Um estudo de Mississippi descobriu que, em alguns municípios, mais de 10 por cento dos alunos das escolas de jardins da infância não foram autorizados a avançar para a primeira série.
“Até recentemente, habilidades de prontidão escolar não eram uma prioridade na agenda de ninguém, nem a ideia de que os alunos mais novos poderiam ser desqualificados para passar para uma fase posterior. Mas o jardim de infância agora serve como um “porteiro” e não como um tapete de boas vindas para a escola primária e as preocupações com a preparação para a escola começam cada vez mais cedo. Uma criança que se quer que leia até o final do jardim de infância deveria de fato estar se preparando na pré-escola. Como resultado, as expectativas, sem dúvida, que poderiam ter sido razoáveis para os mais velhos de 5 e 6 anos, como ser capaz de se sentar em uma mesa e completar uma tarefa usando lápis e papel, estão agora dirigidas às crianças ainda mais jovens, que não têm habilidades motoras e não têm a capacidade de atenção para ser bem sucedidas. “
“Salas de aula da pré-escola se transformaram em espaços cada vez mais tensos, com os professores fazendo ameaças de que as crianças devem concluir o seu “trabalho” antes que eles possam ir brincar.
“Novas pesquisas destacam aspectos particularmente inquietantes. Uma grande avaliação do sistema de financiamento público da pré-escola em Tennessee, publicado em setembro, encontrou que, embora as crianças que frequentaram pré-escolas inicialmente exibiram mais “habilidades de prontidão escolar” em relação às que não fizeram jardim de infância, durante a primeira série, no entanto,  as atitudes em relação à escola foram se deteriorando. E na segunda série se saíram pior em testes que mediram habilidades de alfabetização, linguagem e matemática. Os pesquisadores disseram à revista New York que a dependência excessiva de instrução direta e repetitiva, uma pedagogia pobremente estruturada, foram provavelmente as culpadas; crianças que tinham sido submetidas ano após ano às mesmas tarefas insípidas foram, compreensivelmente, perdendo seu entusiasmo pela aprendizagem estruturada. “

“Recentes estudos sugerem que as pressões por accountability que hoje invadiram as primeiras séries e o jardim da infância são caracterizadas por um maior foco nas competências acadêmicas e uma redução de oportunidades para brincar. Este artigo compara as salas de aula do jardim de infância entre 1998 e 2010, utilizando dois grandes conjuntos de dados nacionalmente representativos. Mostra mudanças substanciais em cada uma das cinco dimensões consideradas: crenças dos professores de jardim da infância sobre prontidão para a escola, tempo gasto com conteúdo acadêmico e não acadêmico, organização da sala de aula, abordagem pedagógica, e utilização de avaliações padronizadas. Os educadores de infância no período posterior tinham expectativas acadêmicas muito mais altas para as crianças, tanto antes da entrada no jardim de infância como durante os anos de jardim de infância.
Eles dedicam hoje mais tempo à alfabetização avançada e conteúdo de matemática, instrução dirigida pelo professor e avaliação, e substancialmente menos tempo para arte, música, ciência e atividades selecionadas pelas crianças. As alterações foram mais acentuadas para as escolas que atendem altas proporções de crianças de baixa renda e não-brancas.”
Refletindo sobre a Finlândia, Erika diz no The Atlantic:
“Aqui está o que os finlandeses, que não começam uma instrução formal de leitura antes de 7 anos de idade, têm a dizer sobre a preparação de pré-escolares para ler: “A base para o início da alfabetização é que as crianças tenham atenção e ouçam … que elas tenham falado e conversado, que as pessoas tenham discutido [coisas] com elas … Que elas tenham feito perguntas e recebido respostas. “
Ou seja, há opções bem sucedidas ao estudo da Lemann. É preciso ter claro que a opção pela orientação Lemann reproduz caminhos que conduzirão a efeitos nefastos para a formação de nossas crianças, como de resto a pesquisa tem sucessivamente evidenciado.
https://avaliacaoeducacional.com/2015/12/20/educacao-infantil-esta-virando-ensino-fundamental/

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil 

  Com reconhecimento da Educação Infantil como direito social das crianças e dever do Estado, afirmado na Constituição Federal de 1988,  fruto de grande debates envolvendo diferentes setores da sociedade, como os movimentos das mulheres, de trabalhadores, educadores e de redemocratização do país. Tem seu reconhecimento através da Lei n° 9.394/96, Art. 29. como a primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5(cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. 
      Historicamente essa etapa passou por diversos processos, recentemente o que se tem debatido é que práticas pedagógicas  devem ser adotadas para garantir o ensino e o desenvolvimento de crianças em espaços coletivos. Tendo em vista a não antecipação de conteúdos que serão trabalhados no Ensino Fundamental.
       Com o intuito de  orientar essas concepções e práticas, o Ministério da Educação (MEC) lançou a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. As Diretrizes apresentam a concepção de Educação Infantil vigente e estabelecem os princípios éticos, políticos e estéticos que devem guiar as propostas pedagógicas desse ciclo. Essas propostas devem ter como objetivo “garantir à criança acesso a processos de apropriação, renovação e articulação de conhecimentos e aprendizagens de diferentes linguagens, assim como o direito à proteção, à saúde, à liberdade, à confiança, ao respeito, à dignidade, à brincadeira, à convivência e à interação com outras crianças”. 
       Este documento determina que as instituições de Educação Infantil devem atender à função sociopolítica e pedagógica na educação e no cuidado das crianças, complementando o papel das famílias, na promoção da igualdade entre crianças de diferentes classes sociais no acesso a bens culturais e na vivência da infância etc. Também apresenta orientações a propostas pedagógicas para crianças de diferentes culturas. A Resolução  estabelece ainda diretrizes para acompanhamento do trabalho pedagógico e para avaliação do desenvolvimento das crianças, sem objetivo de seleção, promoção ou classificação. 
       Cabe a cada Secretaria de Educação e Instituições de Educação Infantil fornecer este documento para todos os profissionais que trabalham nas Instituições. 
Para ler a Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, acesse:

Contribuições para a política nacional: A avaliação em Educação Infantil a partir da Avaliação de Contexto


A avaliação em Educação Infantil uma contribuição dos integrantes do Projeto “Formação da Rede em Educação Infantil: Avaliação de Contexto” para a política nacional de avaliação em Educação Infantil. O projeto é uma ação da Universidade Federal do Paraná com outras universidades brasileiras (Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Rio de Janeiro e Universidade do Estado de Santa Catarina), além da universidade italiana – Università degli studi di Pavia/Itália – e conta com a par-ceria técnica e financeira da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação.

Aprender Linguagem – Como as interações com o bebê contribuem para o desenvolvimento da linguagem?

Como será que as crianças aprendem linguagem? Qual será o caminho para que consigam se comunicar? Como é a aprendizagem das primeiras palavras? E das primeiras frases? Confira nossa nova série de posts sobre o assunto!
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Aprender linguagem e ampliar as possibilidades de comunicação  é uma tarefa complexa, realizada cotidianamente em pequenos passos. Em cada fase da vida da criança as conquistas são múltiplas e cabe aos adultos oferecer as oportunidades para que esse processo aconteça da maneira mais favorável possível. A plataforma Aprender Linguagem do Laboratório de Educação nos convida a passear pelos diversos momentos que compõem a aquisição da linguagem, dos 0 aos 5 anos, esclarecendo o que acontece em diferentes situações. O Toda Criança Pode Aprender vai inaugurar, com base nesse material, uma nova série de posts, provocando reflexões sobre elementos que fazem parte da aprendizagem inicial da linguagem. Vamos lá?
Para começar, vamos nos focar nas crianças de 0 a 18 meses. As primeiras experiências e contatos com o mundo, conforme já vimos na nossa série sobre desenvolvimento infantil, serão extremamente importantes e marcantes. Entre essas vivências iniciais, destaca-se o contato com o cuidador principal do bebê, com quem ele possui um laço profundo, construído a partir do afeto do adulto e de sua oferta de proteção e cuidado.
Essas primeiras interações que ocorrem entre o bebê e seu cuidador são fundamentais. Entre os dois, estabelece-se uma díade, ou seja, uma ligação muito forte e consistente a partir da qual as repetições constantes das situações de alimentação, higiene, acolhimento etc. começarão a dar valor comunicativo a olhares, sons e gestos. Essas ocasiões em que o cuidador está cara a cara com a criança num jogo de “ações” e “reações” são chamadas de marcos e se apresentam como oportunidades especiais para que a fala do adulto esteja presente. Há um diálogo em questão que futuramente dará sentido às trocas sociais e à inserção no mundo da linguagem. Vejamos um exemplo:
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Essa situações se estabelecerão até que façam parte da rotina do cuidador com o bebê. À medida que as vivências da criança vão sendo integradas às palavras do adulto, o sentido da linguagem se estabelece. Assim, um desconforto desconhecido pouco a pouco será circunscrito como fome, cólica, ou sono, por exemplo. Da mesma maneira, uma sensação boa será traduzida como alegria, animação, bom humor… Mesmo que a criança não possa responder ou se comunicar de modo a ser compreendida socialmente, ela aos poucos irá encontrar gestos, vocalizações e expressões que se repetirão em contextos semelhantes, representando uma intenção. Esse processo chamado verbalização será a primeira etapa para a aquisição da linguagem falada.
http://www.todacriancapodeaprender.org.br/aprender-linguagem-como-as-interacoes-com-o-bebe-contribuem-para-o-desenvolvimento-da-linguagem/

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Formação Continuada mês de Abril/2016


    A formação continuada para os profissionais da Educação Infantil, organizado pela Coordenação Pedagógica do município tem por objetivo a capacitação dos profissionais que atuam diretamente com as crianças nos Centros de Educação Infantil. Compreende-se que um trabalho pedagógico feito com base em conhecimento teórico e metodológico sobre a Educação Infantil, incluindo o compromisso profissional, possibilitará avanços na aprendizagem e desenvolvimento infantil. Segundo Machado (2010, p.2), “o trabalho precisa articular as ações de educação e cuidado, de forma que as situações apresentadas às crianças propiciem aprendizagens que possibilitem o desenvolvimento em todas as suas dimensões”.          
          Os encontros tem a finalidade de proporcionar aos professores momentos para reflexões e estudos, onde os mesmos possam preparar as novas gerações como indivíduo singular, sendo que o desenvolvimento humano é um processo que não é natural. Assim cabe ao professor pensar as relações entre o ensino e desenvolvimento, adaptando as atividades pedagógicas às características de cada período psíquico da criança.

Inslane Roussenq Fortunato Felipe
   Coordenadora Pedagógica da Educação Infantil 











quarta-feira, 30 de março de 2016

A aventura de planejar


Luciana Esmeralda Ostetto, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde leciona no curso de Pedagogia e no mestrado em Educação, tem assumido o campo da educação infantil como foco e compromisso, sobretudo discutindo a prática pedagógica e as relações da arte com a infância e a formação de professores. “No momento, estou pesquisando sobre a documentação pedagógica na educação infantil. Há dois anos coordeno um projeto de extensão com os profissionais da Unidade Municipal de Educação Infantil Rosalda Paim, em Niterói (RJ)”, conta.
Na UFF, também realiza o projeto de extensão Danças Circulares dos Povos, que foi tema de sua tese de doutorado na Unicamp e tem como pressuposto a necessidade de cultivar espaços sensíveis. “É o que chamo de ser da poesia — aquela porção brincante, criadora, tantas vezes encoberta por camadas de rigidez conceitual”, explica.
Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista realizada por e-mail com a educadora.

Como a senhora vê a relação entre o planejamento diário na educação infantil e a proposta pedagógica da instituição?
Essa relação é essencial e decisiva para a qualidade dos fazeres cotidianos. É na definição da proposta pedagógica, como um documento que sonha e organiza o trabalho coletivo, que cada instituição de educação infantil afirma a intencionalidade da prática pedagógica, não apenas explicitando fundamentos, objetivos e metas, mas apontando caminhos, prevendo possibilidades de caminhar e construir o trabalho educativo com todos — considerando quem já está na instituição e aqueles que chegarão para compor seu coletivo. Por sua vez, o planejamento diário, do professor, marca a intencionalidade de um percurso educativo que está sendo tecido com este ou aquele grupo específico de crianças. Se o projeto político
pedagógico, elaborado e assumido no/para/com o coletivo for um documento claro e significativo, cujo conteúdo e forma realmente se apresentem como apoio à jornada educativa, o professor poderá tomá-lo como base efetiva, como referência para compor seu planejamento diário. Dito isso, estou afirmando que o planejamento diário do professor deve refletir e traduzir a proposta pedagógica coletiva.

Como isso se concretiza na prática?
Vamos pensar: o trabalho pedagógico diz respeito a todos os momentos do cotidiano — englobando também as ações que envolvem as necessidades vitais, o bem-estar das crianças na sua inteireza (acolhida, higiene, alimentação, sono) —, o que demanda prever e organizar também tempos, espaços, formas de realizar essas ações. Então, de onde viriam os fundamentos e diretrizes para o planejamento que sustentam esse fazer? Evidentemente, da proposta pedagógica, que é a carta de identidade da instituição.

Essa relação é considerada pela maioria dos educadores infantis?
Infelizmente, a proposta pedagógica (que eu prefiro chamar de projeto político pedagógico — PPP) tem sido tomada como formulação burocrática, destituída de significado. É muito comum vermos a elaboração de um PPP apenas como obrigação, para cumprir as exigências legais.

Significa que não há relação entre teoria e prática no planejamento?
Não raro, a teoria apregoada no PPP guarda uma distância infinita da prática efetivada. No PPP aparece, por exemplo, um referencial teórico, com citações desse e daquele autor de prestígio, mas, no cotidiano (talvez por ser interditado o processo de reflexão e participação), os professores seguem outros caminhos, vivenciando o planejamento como programação, e não como projeto que revela os conceitos definidos no PPP.

Em que consiste essa ideia de planejamento como programação?
O que chamo de planejamento como programação pode ser visualizado em uma prática ainda usual na educação infantil: a elaboração de uma lista de atividades para serem realizadas com as crianças ao longo da semana, entre um e outro momento da rotina (higiene, alimentação, sono, etc.). Nessa prática, o professor prevê para cada dia uma “atividade pedagógica”, a qual marcaria a principal ação do trabalho desenvolvido com as crianças, aquela que seria explicitamente educativa, com um conteúdo especialmente determinado e dirigido. Considerando a especificidade da educação infantil e seu duplo objetivo (educar e cuidar), contemplar no planejamento somente as chamadas atividades pedagógicas, privilegiar determinados “conteúdos e noções” a serem ensinados pontual e sistematicamente na “hora da atividade” não é suficiente. É incoerente!

Considerando as novas práticas pedagógicas da educação infantil, que mudanças mais significativas ocorreram no modo de planejar?
Percebo que vem ganhando força, em consonância com os novos tempos, de redemocratização da própria sociedade brasileira e da luta pela democratização da gestão escolar, a tentativa de superar os resquícios do tecnicismo, que impõe à elaboração do PPP um ato fragmentário e puramente burocrático. Cer­tamente hoje temos mui­to mais conhecimentos so­bre o campo da educação infantil advindos de pesquisas e de experiências bem-sucedidas. No plano legal, inclusive, é inegável que conquistamos avanços consideráveis nas últimas décadas. Contudo, isso não garante práticas renovadas no modo de planejar, porque planejamento não é apenas um modo de fazer; é uma proposta que contém uma aposta, na qual, embora haja um ponto de partida, não há um ponto de chegada prefixado.

O registro e a documentação do cotidiano, que são feitos pelo professor, têm implicações diretas no planejamento? 
Sim, as implicações são diretas e determinantes. É o que venho escrevendo e discutindo há tempos com os educadores em formação: sem observação e registro, não pode haver planejamento coerente, que revele crianças e convide à aventura do conhecimento pelos territórios do brincar. O registro diário, como espaço privilegiado da reflexão do professor, é instrumento imprescindível do seu trabalho, articulando-se ao planejamento e à avaliação. No registro escrito, como um diário, o professor marca seu olhar sobre o grupo e a própria prática, documenta o vivido e constrói pontes para reflexão sobre os caminhos a seguir, conduzindo ou reconduzindo os objetivos traçados para a experiência proposta. Apoiado na documentação que vai tecendo sobre a experiência (utilizando-se de anotações breves, diários, narrativas, fotografias dos processos e produções das crianças, gravações em áudio, filmagens, organização das produções do grupo, etc.), o educador exercita a escuta sensível das crianças e pode assumir coerentemente o planejamento como um projeto, gestado no processo reflexivo do encontro com elas.

Registrar e documentar são etapas do planejamento, mas não são suficientes. O que é preciso para um bom planejamento em educação infantil?
Interessante refletir sobre essa pergunta. Com certeza, a qualidade de um planejamento não está na tipologia, na formulação, mas na ação do educador. Depende, em muito, do seu compromisso e da sua formação, da qualidade das interações que mantém com o grupo de crianças, do repertório de informações e experiências que construiu, das relações que estabelece com o conhecimento, dos valores nos quais acredita. Nesse sentido, não se trata de buscar a melhor maneira de planejar, como se existisse um modelo absolutamente seguro, fechado em si mesmo, adequado para todo e qualquer grupo de crianças, para todos os tempos e espaços. Traçar um bom planejamento envolve assumir a necessidade de — e se entregar ao processo de — se desvencilhar de certos automatismos pedagógicos (entre os quais, a “hora da atividade”) que nos impedem de ver a criança em sua inteireza, de qualificar e acolher suas múltiplas linguagens.

Tal processo é viável na realidade das escolas? 
Claro, mas não podemos desconsiderar as condições objetivas, como as materialidades (espaços, móveis, objetos, materiais, etc.) disponibilizadas nas instituições com as quais e por meio das quais os professores poderão contar (ou não) para efetivar propostas sonhadas e projetadas com as crianças, em resumo, para pensar e fazer um bom planejamento.
Que outro aspecto pode ser considerado?
É necessário haver articulação entre três momentos-movimentos do processo de planejamento e efetivação de uma proposta pedagógica: o PPP (elaborado coletivamente, documento-roteiro que guia a instituição como um todo), o projeto (elaborado pelo professor na especificidade do grupo de crianças com o qual compartilha o cotidiano, documento-roteiro que guia seu trabalho com aquele grupo em particular) e o planejamento (elaborado, visto e revisto no processo cotidiano, documento-roteiro que guia o professor diariamente). Um momento-movimento apoia o outro e dele se alimenta. Cada momento-movimento deve refletir e traduzir o outro — e tudo isso é planejamento na educação infantil.

E o que dizer da relação entre planejamento e espontaneidade na educação infantil? 
Planejar é uma ação requerida de todo professor. Faz parte das suas atribuições como profissional. No entanto, o planejamento não é sinônimo de rigidez. Muitas vezes, o professor encaminha uma proposta e, no percurso, as crianças vão para lados opostos, demonstrando outros focos de atenção e desejo: elas fazem sugestões, comentários, outras proposições. Se o professor estiver atento às manifestações das crianças, verá indicações — nas expressões, nos gestos, nos movimentos, nas falas — de novas possibilidades para continuar a história inicial, que poderá multiplicar-se em muitas outras. O planejamento pedagógico é a base para a atuação do professor, horizonte de um caminho que pretende percorrer com o grupo de crianças, que marca sua intencionalidade e compromisso educativos, mas não pode ser uma camisa de força, rígida e mecanicamente vestida no cotidiano (justificativa para não considerar os desejos das crianças)! A possibilidade de redefinir a rota planejada é parte constitutiva do processo. Isso retrata bem uma imagem de planejamento que tenho: aventura!

A mudança paradigmática apontada nas DCNEIs  refletiu-se no modo de os professores planejarem. Como esse movimento foi entendido pela maior parte dos educadores infantis? 
Antes de tudo, precisamos ter claro que as mudanças não acontecem apenas em razão do avanço e da pertinência das determinações legais. Mudar, em educação, significa transformar práticas, e práticas são efetivadas por pessoas. É preciso tempo! Ainda que as DCNEIs representem um avanço em termos de princípios e concepções assumidos, a apropriação e a consequente articulação de seu conteúdo no âmbito da prática pedagógica ainda estão por se realizar (por se conquistar!). Isso pressupõe processos formativos contínuos, apoiando as travessias dos educadores. Não basta dizer: “Tal é o princípio, veja, é assim que se faz!”. É necessário haver tempo e espaço para reflexão, apropriação, afirmação ou redefinição de princípios e práticas já constituídos pelos professores.

Quais são as principais dúvidas e questionamentos no dia a dia das escolas?
A questão “como planejar” permanece como preocupação primeira e tem crescido, sobretudo quando relacionada ao trabalho pedagógico voltado às crianças de 0 a 3 anos. Planejar seria apenas uma questão de forma? Não, é claro que não. Envolve complexos fundamentos, condições teóricas e práticas, como vimos discutindo ao longo da entrevista, que, por sua vez, conduzem às atitudes, aos processos provocados, acolhidos, encaminhados e sistematizados pelos educadores — seja na docência, seja na gestão.

Quais são os conceitos essenciais a serem considerados pelos educadores quando planejam suas ações junto às crianças?
No meu entender, as DCNEIs/2009, ao definirem como eixos das propostas pedagógicas a brincadeira e as interações, indicando campos de experiências que devem ser contemplados, explicitam o essencial para a organização do planejamento no contexto brasileiro. Nesse documento, também está referenciada a concepção de criança que deve nortear as propostas e práticas de todas as instituições de educação infantil. Pouco se avança sem colocar em xeque concepções ainda presentes, segundo as quais a criança é incompleta e incapaz, um “vir a ser” e, por isso, totalmente dependente do adulto. Afinal, se a criança é portadora de múltiplas linguagens, é imprescindível aprender sua língua para que se possa com ela dialogar atenciosa e respeitosamente. Elaborar um bom planejamento no espaço da educação infantil significa, pois, construir uma boa relação com as crianças, abrir-se à escuta do que dizem por meio de suas múltiplas linguagens — gestos, falas, silêncios, grafismos, corpo inteiro. Significa tecer caminhos para ampliar a leitura que fazem do mundo: por um lado, acolhendo suas perguntas, mergulhando na aventura do conhecimento, maravilhando-se, espantando-se junto com elas pelos territórios e paisagens explorados; por outro, oferecendo apoio as suas ideias e projetos para que possam expressar-se de diferentes maneiras sobre o que perguntam, supõem, experimentam e descobrem na relação com a cultura, a natureza, a sociedade, enfim.

Como as relações de tempo e espaço integram-se ao planejamento?
Planejar implica pensar também os tempos e os espaços da educação infantil: “onde” e “quando” se desenvolverá uma proposta, uma ação. A organização do espaço como ambiente é um importante elemento da proposta pedagógica: o espaço revela intenções e relações, educa (para a autonomia ou para a submissão, para a liberdade ou para o controle) e, portanto, precisa ser foco do planejamento. O encaminhamento e a articulação das proposições ao longo do dia, organizando o tempo e o espaço, dizem respeito à constituição de uma rotina, elemento fundamental para a prática pedagógica, que também requer planejamento.

Qual a importância da participação das crianças no planejamento? 
Tomando a metáfora do planejamento como um roteiro de viagem, é justo e recomendável que todos os viajantes acompanhem sua organização, participem de sua estruturação; em uma palavra, que também possam fazer escolhas. Toda criança tem direito a se contrapor, a argumentar, a sugerir caminhos diversos daqueles propostos pelo professor e pela instituição no seu conjunto; tem direito a apresentar ideias revelando seus modos próprios de ser e se expressar, respondendo aos desafios colocados no processo educativo junto ao coletivo.

Como promover essa participação?
A participação das crianças poderá ser instigada e garantida utilizando-se registros (como o caderno da turma, o livro da vida, os cadernos de propostas e ideias, o “blocão” em que são anotadas as proposições diariamente), mas, sobretudo, com a prática da assembleia ou roda — momento por excelência dos combinados. E combinar é também planejar a continuidade da viagem!
  • Luciana Esmeralda Ostetto, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Crédito da Imagem:
Foto: José Acácio de Almeida

http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/12087/a-aventura-de-planejar.aspx

Formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade


REPORTAGEM // Zilma de Oliveira

Publicadas em dezembro de 2009, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEIs) foram elaboradas com base em uma ampla escuta a educadores, movimentos sociais, pesquisadores e professores universitários. Assessora do relator das diretrizes, Zilma de Moraes Ramos de Oliveira viveu intensamente esse processo e esteve atenta às demandas apresentadas. “Foi destacada a necessidade de estruturar e organizar ações educativas com qualidade, articulada com a valorização do papel dos professores que atuam junto às crianças de 0 a 5 anos”, conta.

Nesta entrevista, a educadora, livre-docente em Psicologia do Desenvolvimento pela USP, com uma longa trajetória dedicada à pesquisa e à docência universitária ligadas à educação infantil, fala sobre as DCNEIs, que considera um importante instrumento orientador da organização das atividades cotidianas das instituições de educação infantil: “Há nas DCNEIs uma aposta muito grande na possibilidade de o trabalho pedagógico com as crianças desde cedo desenvolver cidadãos brasileiros com formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade”.
Como foi o processo de discussão das DCNEIs?
A formulação das diretrizes foi um processo articulado pelo Conselho Nacional de Educação e pelo Ministério da Educação (MEC) em 2009. Iniciou-se por uma solicitação do MEC a pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para avaliar as demandas e recomendações de diferentes grupos — movimentos sociais, redes municipais, centros de formação docente, pesquisadores — acerca do que deveria consistir o processo de aprendizagem e desenvolvimento promovido pela educação infantil.

Como foi uma revisão das diretrizes anteriores, em que as atuais avançaram ou se diferenciaram?
As novas diretrizes explicitam mais a identidade da educação infantil, reconhecem o perfil do educador que trabalha junto às crianças nesse nível de ensino como professor, apontam campos de experiências que deveriam ser objeto do trabalho do professor junto às crianças e ressaltam a educação das crianças indígenas, do campo e das crianças com necessidades educacionais especiais.

Quais são os aspectos mais relevantes das novas DCNEIs?
Há nas DCNEIs uma aposta muito grande na possibilidade de o trabalho pedagógico com as crianças desde cedo desenvolver cidadãos brasileiros com formação para a autonomia, a solidariedade e a sensibilidade. Os eixos articuladores desse documento são as interações e a brincadeira.

Em relação às interações entre crianças e entre elas e os adultos, co­mo a senhora vê acompreensão desse conceito por parte dos educadores infantis de modo geral?
Uma boa compreensão do conceito de interação como ação que vai constituindo-se entre pessoas é fundamental para o trabalho docente. Aqui se trata de reconhecer o protagonismo das crianças e acolher a maneira como elas respondem às iniciativas do professor e dos colegas. Não se pensa em uma ação unidirecional do professor para a criança, mas em uma ação de mão dupla, em que os parceiros, em especial outras crianças, regulam-se mutuamente.

As DNCEIs apontam a vivência de experiências que contemplem esses eixos. Como a senhora define a expressão “experiência” nesse contexto?
Para mim, a experiência refere-se à singularidade de sentido que uma mesma atividade pode ter para diferentes crianças. Ela se opõe à atitude de propor que todos façam a mesma coisa do mesmo jeito o tempo todo, ao conceito de prévia determinação de resultados e à concepção de uma forma de coordenar o processo de aprendizagem-desenvolvimento que pode ser repetida com várias turmas como se fosse uma receita. A noção de experiência admite que as situações criadas no cotidiano da educação infantil são dinamicamente modificadas pelas atuações da criança a partir do significado que ela lhes atribui enquanto interage. Oferecer à criança a oportunidade de trabalhar com diferentes campos de experiência significa ouvi-la, acolhê-la e apoiá-la em seu desenvolvimento.

Como as novas DCNEIs articulam os princípios éticos, estéticos e políticos aos eixos da interação e da brincadeira?
Na verdade, esses princípios devem fundamentar tanto as relações interpessoais (professor-criança e criança-criança) quanto às atividades mais promissoras em termos do desenvolvimento nessa faixa etária (brincadeiras, ludicidade). Assim, todas as vivências cotidianas na educação infantil devem ser marcadas pela promoção da autonomia e do espírito crítico (princípio político), do respeito e da solidariedade (princípio ético) e da sensibilidade e criatividade (princípio estético).

Como as DCNEIs se relacionam com as diretrizes da educação básica?
Uma análise das diretrizes da educação básica e das diretrizes da educação infantil indica os pontos de continuidade que o processo educacional deve garantir em todos os níveis de ensino, embora com a especificidade que o trabalho nos diferentes níveis requer.

A senhora considera que, a partir da promulgação das DCNEIs, ocorreram modificações significativas nas políticas públicas nessa etapa de ensino?
Apesar de mudanças nas concepções e práticas dos educadores requererem tempo significativo para se consolidar, a mera discussão das diretrizes, ou seja, o debate em relação às possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento que podem ser abertas pelo cotidiano da instituição de educação infantil, já aponta nova etapa nessa área.

Quais são os avanços na dimensão pedagógica, principalmente no trabalho desenvolvido junto às crianças?
Muitas são as unidades, turmas, educadores e crianças hoje na educação infantil, o que torna impossível uma afirmação categórica, mas práticas junto às crianças que contrariam o disposto nas DCNEIs não são mais defendidas em programas de formação. O que se observa, de modo geral, é o desconhecimento desse documento por muitos educadores infantis.

Que tipo de ações é preciso desencadear para que as DCNEIs sejam vividas nas práticas cotidianas das instituições de educação infantil, atingindo professores e pais?
Um esforço conjunto de universidades e outros centros formadores, secretarias de educação e outros agentes como a mídia pode colocar as diretrizes no centro do debate e da formação de uma nova percepção da criança com maior valorização da educação infantil e de seus profissionais.

A formação dos pedagogos está em sintonia com as DCNEIs?
Sim, em muitos centros formativos há essa consonância. Outros núcleos de formação docente ainda estão mais voltados à formação para o ensino fundamental, dando menor espaço para discutir a especificidade envolvida no trabalho da educação infantil.

A senhora considera que este documento já deveria sofrer transformações?
É claro que aprimoramentos são bem-vindos e deverão ocorrer conforme a implementação das orientações das DCNEIs se fizerem presentes, documentadas e avaliadas pela área.

Crédito da Imagem:
Foto: Katia Hatiya
http://www.grupoa.com.br/revista-patio/artigo/11069/formacao-para-a-autonomia-a-solidariedade-e-a-sensibilidade.aspx